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quinta-feira, 22 de agosto de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND V - D. H. Lawrence




O escritor.


David Herbert Lawrence ou D.H. Lawrence nunca foi um escritor consensual, excepto quanto ao reconhecimento do seu génio.

Talvez a mais polémica das suas obras tenha sido "O amante de Lady Chatterley", publicado ainda em vida numa edição quase clandestina, e que só chegou ao grande público trinta após a morte do autor, não sem antes ser sujeito a um processo judicial em que as autoridades pretendiam manter a sua proibição devido ao conteúdo alegadamente obsceno da obra.

Este romance é invariavelmente catalogado como "erótico" uma vez que contém a descrição explícita do envolvimento romântico de Lady Chatterley com o seu amante.

No entanto, acima e além deste pormenor, trata-se de um grande livro, denso, complexo e muitíssimo bem escrito.

O título é, antes de mais, enganador. O amante não é o personagem principal, nem a acção gira em torno dos actos praticados pelos amantes.

Ao lê-lo, vem-me à memória o título de um filme de John Houston que foi o último, quer de Clark Gable, quer de Marilyn Monroe: "The misfits" ou "os inadaptados".
Na verdade, é uma história de gente aleijada, ou, para ser menos cru, de personagens incompletos, amputados, inadaptados.

Com efeito, Sir Clifford vai para França combater pelo rei e pátria e regressa estropiado numa cadeira de rodas, paralisado da cintura para baixo e, obviamente incapaz de garantir um herdeiro à casa de Wragby. Para além da maleita física, o Barão tem dificuldade em adaptar-se à sua nova vida, à Inglaterra do pós-guerra e à modernidade em geral. 
Constance, ou Connie, após uma experiência modernista e libertadora no continente, regressa a casa para um casamento quase de conveniência com Clifford e é remetida à vida de baronesa de província, sentindo-se, também ela, uma inadaptada.
Finalmente, Mellors é o couteiro, ou guarda de caça de Wragby, proveniente das classes trabalhadoras, que se alista no exército e conhece mundo, chegando a ser oficial subalterno, até que uma doença o força à desmobilização e ao regresso à terra natal e à classe baixa de que se libertara, também ele um ser frustrado e inadaptado à sua nova velha vida como serviçal.

Como na restante obra de D. H. Lawrence, existem vários conflitos latentes: Desde logo, o conflito de classes: Clifford é um aristocrata, Mellors, um proletário que se libertara da sua condição pela carreira no exército, Connie, muito embora pertencendo às classes abastadas, não pertence à aristocracia senão em virtude do casamento.

Há também o conflito entre a ruralidade e a Londres cosmopolita, a modernidade e a tradição, os antigos e os novos valores da Inglaterra dos anos vinte, finalmente, o conflito entre a natureza e a técnica, tão em voga na época. 

As cenas amorosas entre Connie e Mellors terão chocado os censores. No entanto, o choque seria bem menor se não existisse uma diferença de classes entre eles e se o marido enganado não fosse o aristocrata. Se fosse o patrão com a criada, estaríamos no domínio da comédia. Mas é a patroa com o criado...

O primeiro trecho descreve dois envolvimentos amorosos. Repare-se que a narrativa é no feminino (na verdade, Lady Chatterley é que é a protagonista, a haver um na trama), o que é notável para um escritor masculino à época.



Extropiados da Grande Guerra.

I.

“Ela abraçou-o sob a camisa, mas sentiu medo, medo daquele corpo magro, macio e nu, mas que parecia tão forte, medo daqueles músculos violentos. Ela contraiu-se com medo.
    E quando ele disse “É bom, é bom!” algo dentro dela estremeceu, e qualquer coisa no seu espírito acordou, pronto a resistir. A resistir àquela terrível intimidade física e à urgência da posse. E o êxtase violento da paixão não a invadiu. Ficou de mãos inertes no corpo do homem em luta. E, embora tentasse, não conseguia deixar de observar friamente, distante, o que se passava; e o movimento das ancas do homem era ridículo, e mais ridículo o frenesim do pénis até à pequena crise da ejaculação. Sim, aquilo era o amor, aquele movimento ridículo das nádegas, aquele esmorecimento de um pénis insignificante e húmido. Era esse o divino amor! Afinal, os modernos tinham razão em desprezar aquela representação teatral, porque, no fundo, não passava de uma representação. Tinham razão os poetas ao dizerem que o Deus que criou o homem teve um humor sinistro em o criar como criatura dotada de razão e obrigá-lo àquela posição ridícula, e a desejar cegamente aquela representação. Até Maupassant achava que era um anticlimax humilhante. Os homens tinham desprezo pelo acto sexual, e no entanto, praticavam-no.
    Frio e ridículo, o seu estranho espírito feminino manteve-se afastado e, embora ela não se mexesse, o seu impulso era para levantar os rins, empurrar o homem, subtrair-se àquela prisão e ao movimento das suas ancas ridículas. O corpo dele era uma coisa louca, impudente, imperfeita, um pouco repugnante na sua inépcia incompleta. Uma transformação completa com certeza eliminaria aquela representação, aquela “função”.
    E, no entanto, quando ele acabou e ficou muito quieto, retirando-se em silêncio, num afastamento estranho, sem movimento, inatingível, o coração de Connie começou a chorar. Ela sentia-o afastar-se, afastar-se, deixando-o como uma pedra na praia. Ele afastava-se espiritualmente dela. E ele tinha consciência disso.
    E, invadida de uma verdadeira tristeza, atormentada pela sua dupla consciência e reacção, começou a chorar. Ele não deu por isso, talvez não soubesse que ela estava a chorar. A tempestade de soluços cresceu dentro dela e sacudiu os dois corpos.”





Esta beldade dos anos vinte poderia ser Lady Chatterley.
II.

“Ele não respondeu. Limitou-se a beijá-la ternamente, deitado tranquilamente em cima dela. E ela gemia em beatitude, como uma vítima, como algo que acaba de nascer. Tinha despertado no seu coração uma estranha admiração por ele. Um homem! A estranha potência da virilidade em cima dela! As suas mãos vagueavam pelo corpo dele, ainda um pouco receosas perante aquela coisa estranha, hostil, que ela julgara repugnante: um homem. E quando o tocou, oh! Eram os filhos de Deus em contacto com as filhas dos homens.”




D. H. em uma outra pose muito moderna.


O segundo trecho é extraído do âmago da acção: O improvável encontro do triângulo no campo. Mais uma vez, a escrita subtil do autor faz apelo à metalinguagem (a alusão ao estado do tempo e às flores esmagadas, os silêncios e os olhares, as cores) e toda a cena está carregada por uma tensão insuportável.


“O homem encostou a espingarda a uma árvore, tirou o casaco e atirou-o para o chão. A cadela castanha ficou de guarda. Depois, apoiado nos calcanhares, espreitou por baixo da cadeira e com os  dedos examinava o pequeno motor oleoso. Irritava-o pensar em alguma nódoa na sua camisa de domingo. (…) Deitou-se de ventre para baixo, com o pescoço levantado, apalpou o motor. Connie pensava como um homem era uma coisa patética, fraca e pequena, quando deitado sobre a grande terra-mãe. (…) O guarda afastou-se na intenção de ir buscar o casaco e a espingarda. A cadeira pareceu ter um colapso e parou. Clifford sentia-se como um prisioneiro. Ficou branco de raiva. Accionava a alavanca com a mão, os pés não lhe serviam para nada. Ela emitiu uns sons esquisitos. Com uma  impaciência selvagem ia accionando pequenos manípulos, e ela soltava ruídos, mas como não se movia, acabou por desligar o motor.
    Connie continuava sentada no talude, a contemplar as campainhas destruídas e esmagadas. “Não há nada mais belo do que a Primavera inglesa.” “Sou capaz de desempenhar as minhas funções de chefe.” “Precisamos de mais chicotes do que espadas.” “As classes dirigentes!”
    O guarda começou a subir a passos largos, já munido do casaco e da espingarda, Flossie seguia, cautelosamente, atrás dele. Clifford pediu então a Mellors que examinasse o motor. Connie, que não percebia nada de técnica dos motores e não tinha experiência de avarias, continuava placidamente sentada no talude, como se não existisse. Ele deitara-se de bruços. As classes dirigentes e as classes servidoras!
    Mellors levantou-se e disse com paciência:
- Experimente outra vez – com voz calma como se se dirigisse a uma criança.
    Clifford experimentou e ele foi atrás para a empurrar. A cadeira avançava, o motor fazia metade do trabalho e o homem o resto.
    Clifford voltou-se, amarelo de raiva.
- Saia já daí!
    Mellors afastou-se rapidamente para a banda, enquanto Clifford acrescentava:
- Como é que hei-de saber se ela está a funcionar?
    O guarda pousou a espingarda e começou a vestir o casaco. Desligara-se do assunto.
A cadeira começou a recuar lentamente.
- Clifford, olha que a cadeira não está travada! – Gritou Connie.
    Ela e Mellors conseguiram agarrar a cadeira, fazendo-a parar. Durante um momento pairou um profundo silêncio.
- É evidente que me encontro à mercê de qualquer pessoa! – exclamou Clifford, que estava amarelo de raiva.
    Ninguém respondeu. Mellors estava a pôr a espingarda a tiracolo, o seu rosto tinha uma expressão estranha e impassível; só uma paciência abstracta a caracterizava. A cadela Flossie, vigilante, quase entre as pernas do dono, terrivelmente perplexa, fitava a cadeira com um olhar carregado de desconfiança e hostilidade entre aquelas três criaturas humanas. O tableau vivant continuava imóvel entre as campainhas esmagadas. Ninguém proferiu uma palavra.”

“- Não, não pode levantar a cadeira. Dá cabo de si - insistiu Connie, vermelha de fúria.
      Ele fitou-a nos olhos e fez-lhe um sinal com a cabeça. Ela fez o que ele dizia. Ele levantou-a e ela puxou com força, a cadeira vacilou.
- Por amor de Deus! – exclamou Clifford assustadíssimo.
    Mas estava tudo bem, Mellors tinha conseguido soltar o travão. Pôs uma pedra debaixo da roda e foi sentar-se no talude. O coração batia com muita força, a cara estava branca do esforço, quase inconsciente.
    Connie olhou para ele e quase gritou de raiva. Os três mantiveram-se em silêncio sepulcral. Connie viu as mãos dele tremerem sobre as coxas.
- Está ferido? – perguntou ela, dirigindo-se para ele.
- Não, não! – ele voltou-se, irritado.
    Novamente fez-se um silêncio de morte. A cabeça loura de Clifford não se movia. Até a cadela estava imóvel. O céu cobria-se de nuvens.
    Por fim, Mellors soltou um suspiro e assoou-se a um lenço vermelho.

- A pneumonia deu cabo de mim.”