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domingo, 10 de novembro de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND IX

Hermann Hesse



   Hermann Hesse foi um escritor alemão cuja vida e obra marcaram a primeira metade do século XX. Mais conhecido como o autor de “Siddhartha”, duas das suas obras exerceram um particular fascínio em mim: “O lobo das estepes” e “Narciso e Goldmundo”, do qual deixo aqui um dos trechos mais reveladores.

   A escrita de Hesse é magistral e profunda, própria não só do homem culto que foi, mas de um pensador que reflectiu sobre a natureza da sua arte e do mundo que o rodeia.


Pietá


“…as naturezas da tua espécie, dotadas de sentidos fortes e apurados, naturezas de anímicos, de sonhadores, de poetas e amorosos, são-nos quase sempre superiores, a nós intelectuais e servidores do espírito. A vossa origem é materna. Viveis na plenitude, foi-vos concedida a força do amor e a intensidade do sentimento. Nós, os servidores do espírito, embora pareça às vezes que vos guiamos e dirigimos, não vivemos na abundância, vivemos na carência. A vós pertence-vos a opulência da vida, a suculência dos pomos, o jardim do amor, o reino belo da arte. A vossa pátria é a terra, a nossa é a ideia. O vosso perigo é afogar-vos no mundo dos sentidos, o nosso é sufocarmos no espaço rarificado. Tu és artista, eu sou pensador. Tu dormes no regaço da mãe, eu velo no deserto. O sol brilha para mim, para ti a lua e as estrelas…” 

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND VIII. LIVROS E ESCRITORES QUE ALIMENTAM A MENTE

Vergílio Ferreira sobre Eça de Queiroz



  Ainda do diário de Vergílio Ferreira "Conta-corrente", duas entradas acerca do mestre maior das nossas letras de oitocentos:

  Na primeira, o valor emotivo das palavras, na segunda, a magia das palavras.

   13 de Setembro (sexta) 1974. De vez em quando, releio uma página do Eça. E é sempre o mesmo encantamento, a mesma misteriosa vibração da "palavra". Ninguém como ele conheceu as ocultas ressonâncias da língua. Os especialistas afirmam o "arbitrário" das palavras. É julgar a língua como uma articulação mecânica. Decerto o que não parece deriva do que nela acumulámos de emotividade. Mas creio que um enorme número de palavras tem uma raiz onomatopaica, ao menos longínqua. No "ribombar" ou "cacarejar" é evidente. Mas por exemplo "lua" (moon, luna, sêlênê) não terá a sugestão de suavidade, ténue fluidez que tem algo de onomatopaico? A palavra "cola" e a mais popular "goma" têm a mesma sugestão, mas voltada para realidades diferentes. A "cola" é seca e a "goma" é viscosa. A primeira refere um efeito, a secura do que está colado; a segunda refere-se à própria qualidade do líquido (como o glue inglês - este, sugestionante do murmúrio da goma escorrente de um gargalo -, palavra onomatopaica também), um líquido viscoso, pastoso. Uma mulher "bela" é mais alta que uma mulher "bonita" ou "linda", sendo que a "bonita" sugere uma nitidez de contornos como uma boneca, e "linda" sugere uma pequena estatura e um certo resplendor, talvez do olhar. Mas donde a "altura" da "bela"? Talvez o alongamento do e e do l que prolonga a dicção. (Daí o "resplendor" de "linda" da conjugação do l e do in que é agudo e expansivo.) Do mesmo modo, uma mulher "formosa" é mais "redonda" ou mesmo mais "gorda" do que uma mulher "bela". E a sua beleza é mais "moral" que a da mulher "bela" ou "linda". Mas porque é que "calvo" não é muito cómico e o é "careca"? Talvez porque "careca" tem uma nitidez que sugere a rasa superfície de um crânio como uma bola de bilhar e "calvo" (alvo) sugere só a brancura desse crânio, dando o c a sugestão do "redondo" (calvo-cavo). Do mesmo modo "violino" ou "rabeca". A "conotação" das palavras, o seu valor emotivo, deriva da carga de sensibilidade que nelas depusemos. mas assim, elas têm longinquamente um valor onomatopaico a posteriori. Detendo-nos, porém, na simples relação entre a palavra e o seu significado, nós descobrimos decerto que um grande número delas tem um intrínseco significado que em nada é arbitrário. Mas aquelas que o são - sê-lo-ão mesmo? Será imaginável uma designação por mero arbítrio, parecido com o capricho? Não é mais lógico admitir que o laço de necessidade se perdeu?


          

Quinta do Vesúvio, Douro, Portugal


  15 de Agosto (sexta) 1975. Que fazer? Que ler? Que pensar? Tomo A Cidade e as Serras, releio pela centésima vez algumas páginas da segunda parte. E um prazer infinito inunda-me na alegria da serra, no prazer sensório da realidade inventada pela magia da palavra do maior artista dela na nossa literatura. E a cada passo estremeço de uma delícia indizível na "água nevada e luzidia" da fonte, no grande salão em que o ar circulava "como num eirado", no vinho "seivoso", no grande salão vazio "com uma sonoridade capitular". Todo o "estilo" de Eça se nos dirige aos sentidos que vibram não com a realidade conhecida mas com o prazer que está lá e só na memória se conhece ou na translação dessa realidade que nela vibra e só num sobressalto se conhece como presença oblíqua e incerta. Assim o vinho e a água e tudo o mais é na escrita de Eça que nos sabem maravilhosamente - não no vinho e água que bebemos. Assim o real é insípido e inexpressivo sem o calor e a expressão que o artista lhe inventa e nos ficam submersos na memória e aí procuramos indistintamente para haver sabor e o mais quando em presença desse real.



segunda-feira, 7 de outubro de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND VII. LIVROS E ESCRITORES QUE ALIMENTAM A MENTE



  Ao acaso, dei por mim a folhear o diário de Vergílio Ferreira, "Conta-Corrente", dos anos 1969 a 1976. Aqui se encontram o homem, o marido, o escritor, o professor, o amigo, o esteta, o filósofo, o observador da política, dos costumes, enfim do seu tempo, sempre num registo íntimo e reflexivo.
  São inúmeras, as entradas que merecem leitura e reflexão. Para hoje, deixo duas, a propósito da escrita.

24 de Agosto de 1973

  "Escrevi na entrevista que gosto apenas de "escrevinhar histórias". Não é exacto: eu não escrevo "histórias". Acho infantil, atrasado, o romance que conta uma "história". Insuportável. Uma "anedota" - não. Deixei de fazê-lo há muito. Um romance impõe à nossa emoção, inteligência, uma situação, um problema, um instante de... numa pulverização da "anedota", a recuperar não bem em narrativa mas em saldo emotivo. Construir histórias que se não possam "narrar". Transpor a "história" imediata para a sua transfiguração. Não a história prosificada mas irrealizada em poesia. Não "contar", mas "presentificar" uma situação. Não separá-la de mim, mas vivenciá-la, através de mim, com o leitor. Assim não me interessa "descrever" seja o que for, nomeadamente as "emoções", mas vivê-las (...)"

7 de Julho de 1976

  "Porque escrevo? Porque é que a parte séria do que sou dificilmente passa para este diário? Escrevo fundamentalmente porque a escrita me realiza, como a outros uma ocupação, mas sobretudo porque a escrita me dá acesso ao mundo do encantamento, do milagre, da verdade mais perfeita da vida. Pessoa dizia que poetava por se sentir responsável, perante os homens, do génio que possuía. Não me sinto responsável perante ninguém. Muito menos pelo génio que não tenho para me sentir. Mas se os outros penetrarem, pelos meus livros, no mundo da transfiguração, não deixei de lhes ser útil. Antes deles, porém, estou eu, a execução da parte melhor de mim, o fixar na palavra o que um instante fulgurou aos meus olhos maravilhados. Escrevo porque só a maravilha é real. O resto é o lixo de que se me compõe quase toda a vida. Mas a beleza e a verdade essencial e a transfiguração maravilhosa do imediato dificilmente passam para este diário. Porque estou aqui  demasiado preso a esse imediato para o milagre acontecer. E eu próprio sou indigno dele. Por isso necessito da cortina da "ficção" para me ocultar e a beleza aparecer. Um deus habita no que somos, mas só nos instantes de graça se revela - ou seja, nos revela na divindade que é nossa. Como a certas substâncias, só o despojo de uma enorme massa de desperdício no-la descobre. Somos quase só desperdício. Mas a pequena centelha que fulgura vale as escórias que se recusam."  

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Books feed your mind VI. Livros e escritores que alimentam a mente.


Charles Baudelaire



 Confesso-me culturalmente mais anglófono que francófono, se é que estas divisões significam alguma coisa.

  Hoje, trago um poeta maior da língua francesa e de todas as línguas: Charles Baudelaire, que exerceu uma decisiva influência nos nossos poetas e escritores do final do séc. XIX e princípio do séc. XX.

  O poeta escreveu um livro de "pequenos poemas em prosa" em que a protagonista é a sua amada Paris. O livro chama-se "O spleen de Paris". Uma vez que as pequenas histórias não estão interligadas entre si senão pela sua atmosfera parisiense, podem ser lidas ao acaso.

 Entre as várias histórias, deixo uma das mais pequenas.




AS JANELAS

   Quem olha do exterior para uma janela aberta nunca vê tantas coisas como quem olha para uma janela cerrada. Não existe objecto mais profundo, mais deslumbrante, do que uma janela alumiada por uma candeia. O que se pode ver à luz do Sol é sempre menos interessante do que o que se passa por trás dum vidro. Nesse buraco negro ou luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida.
   Para além das vagas dos telhados, distingo uma mulher de meia-idade, já com rugas na face, pobre, sempre vergada sobre qualquer coisa, e que nunca sai de casa: com o seu rosto, com o seu vestido, com os seus gestos, com quase nada, refaço a história dessa mulher, ou antes, a sua lenda e às vezes conto-a a mim mesmo chorando.
   Se se tivesse tratado dum pobre velho, eu teria refeito a sua vida com a mesma facilidade.
   E deito-me orgulhoso de ter vivido e sofrido pelos outros, que não por mim.

   Talvez me digas: “Estás certo que essa lenda seja verdadeira?” Que pode importar-me qual seja a realidade situada para além de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que sou aquilo que sou? 

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND V - D. H. Lawrence




O escritor.


David Herbert Lawrence ou D.H. Lawrence nunca foi um escritor consensual, excepto quanto ao reconhecimento do seu génio.

Talvez a mais polémica das suas obras tenha sido "O amante de Lady Chatterley", publicado ainda em vida numa edição quase clandestina, e que só chegou ao grande público trinta após a morte do autor, não sem antes ser sujeito a um processo judicial em que as autoridades pretendiam manter a sua proibição devido ao conteúdo alegadamente obsceno da obra.

Este romance é invariavelmente catalogado como "erótico" uma vez que contém a descrição explícita do envolvimento romântico de Lady Chatterley com o seu amante.

No entanto, acima e além deste pormenor, trata-se de um grande livro, denso, complexo e muitíssimo bem escrito.

O título é, antes de mais, enganador. O amante não é o personagem principal, nem a acção gira em torno dos actos praticados pelos amantes.

Ao lê-lo, vem-me à memória o título de um filme de John Houston que foi o último, quer de Clark Gable, quer de Marilyn Monroe: "The misfits" ou "os inadaptados".
Na verdade, é uma história de gente aleijada, ou, para ser menos cru, de personagens incompletos, amputados, inadaptados.

Com efeito, Sir Clifford vai para França combater pelo rei e pátria e regressa estropiado numa cadeira de rodas, paralisado da cintura para baixo e, obviamente incapaz de garantir um herdeiro à casa de Wragby. Para além da maleita física, o Barão tem dificuldade em adaptar-se à sua nova vida, à Inglaterra do pós-guerra e à modernidade em geral. 
Constance, ou Connie, após uma experiência modernista e libertadora no continente, regressa a casa para um casamento quase de conveniência com Clifford e é remetida à vida de baronesa de província, sentindo-se, também ela, uma inadaptada.
Finalmente, Mellors é o couteiro, ou guarda de caça de Wragby, proveniente das classes trabalhadoras, que se alista no exército e conhece mundo, chegando a ser oficial subalterno, até que uma doença o força à desmobilização e ao regresso à terra natal e à classe baixa de que se libertara, também ele um ser frustrado e inadaptado à sua nova velha vida como serviçal.

Como na restante obra de D. H. Lawrence, existem vários conflitos latentes: Desde logo, o conflito de classes: Clifford é um aristocrata, Mellors, um proletário que se libertara da sua condição pela carreira no exército, Connie, muito embora pertencendo às classes abastadas, não pertence à aristocracia senão em virtude do casamento.

Há também o conflito entre a ruralidade e a Londres cosmopolita, a modernidade e a tradição, os antigos e os novos valores da Inglaterra dos anos vinte, finalmente, o conflito entre a natureza e a técnica, tão em voga na época. 

As cenas amorosas entre Connie e Mellors terão chocado os censores. No entanto, o choque seria bem menor se não existisse uma diferença de classes entre eles e se o marido enganado não fosse o aristocrata. Se fosse o patrão com a criada, estaríamos no domínio da comédia. Mas é a patroa com o criado...

O primeiro trecho descreve dois envolvimentos amorosos. Repare-se que a narrativa é no feminino (na verdade, Lady Chatterley é que é a protagonista, a haver um na trama), o que é notável para um escritor masculino à época.



Extropiados da Grande Guerra.

I.

“Ela abraçou-o sob a camisa, mas sentiu medo, medo daquele corpo magro, macio e nu, mas que parecia tão forte, medo daqueles músculos violentos. Ela contraiu-se com medo.
    E quando ele disse “É bom, é bom!” algo dentro dela estremeceu, e qualquer coisa no seu espírito acordou, pronto a resistir. A resistir àquela terrível intimidade física e à urgência da posse. E o êxtase violento da paixão não a invadiu. Ficou de mãos inertes no corpo do homem em luta. E, embora tentasse, não conseguia deixar de observar friamente, distante, o que se passava; e o movimento das ancas do homem era ridículo, e mais ridículo o frenesim do pénis até à pequena crise da ejaculação. Sim, aquilo era o amor, aquele movimento ridículo das nádegas, aquele esmorecimento de um pénis insignificante e húmido. Era esse o divino amor! Afinal, os modernos tinham razão em desprezar aquela representação teatral, porque, no fundo, não passava de uma representação. Tinham razão os poetas ao dizerem que o Deus que criou o homem teve um humor sinistro em o criar como criatura dotada de razão e obrigá-lo àquela posição ridícula, e a desejar cegamente aquela representação. Até Maupassant achava que era um anticlimax humilhante. Os homens tinham desprezo pelo acto sexual, e no entanto, praticavam-no.
    Frio e ridículo, o seu estranho espírito feminino manteve-se afastado e, embora ela não se mexesse, o seu impulso era para levantar os rins, empurrar o homem, subtrair-se àquela prisão e ao movimento das suas ancas ridículas. O corpo dele era uma coisa louca, impudente, imperfeita, um pouco repugnante na sua inépcia incompleta. Uma transformação completa com certeza eliminaria aquela representação, aquela “função”.
    E, no entanto, quando ele acabou e ficou muito quieto, retirando-se em silêncio, num afastamento estranho, sem movimento, inatingível, o coração de Connie começou a chorar. Ela sentia-o afastar-se, afastar-se, deixando-o como uma pedra na praia. Ele afastava-se espiritualmente dela. E ele tinha consciência disso.
    E, invadida de uma verdadeira tristeza, atormentada pela sua dupla consciência e reacção, começou a chorar. Ele não deu por isso, talvez não soubesse que ela estava a chorar. A tempestade de soluços cresceu dentro dela e sacudiu os dois corpos.”





Esta beldade dos anos vinte poderia ser Lady Chatterley.
II.

“Ele não respondeu. Limitou-se a beijá-la ternamente, deitado tranquilamente em cima dela. E ela gemia em beatitude, como uma vítima, como algo que acaba de nascer. Tinha despertado no seu coração uma estranha admiração por ele. Um homem! A estranha potência da virilidade em cima dela! As suas mãos vagueavam pelo corpo dele, ainda um pouco receosas perante aquela coisa estranha, hostil, que ela julgara repugnante: um homem. E quando o tocou, oh! Eram os filhos de Deus em contacto com as filhas dos homens.”




D. H. em uma outra pose muito moderna.


O segundo trecho é extraído do âmago da acção: O improvável encontro do triângulo no campo. Mais uma vez, a escrita subtil do autor faz apelo à metalinguagem (a alusão ao estado do tempo e às flores esmagadas, os silêncios e os olhares, as cores) e toda a cena está carregada por uma tensão insuportável.


“O homem encostou a espingarda a uma árvore, tirou o casaco e atirou-o para o chão. A cadela castanha ficou de guarda. Depois, apoiado nos calcanhares, espreitou por baixo da cadeira e com os  dedos examinava o pequeno motor oleoso. Irritava-o pensar em alguma nódoa na sua camisa de domingo. (…) Deitou-se de ventre para baixo, com o pescoço levantado, apalpou o motor. Connie pensava como um homem era uma coisa patética, fraca e pequena, quando deitado sobre a grande terra-mãe. (…) O guarda afastou-se na intenção de ir buscar o casaco e a espingarda. A cadeira pareceu ter um colapso e parou. Clifford sentia-se como um prisioneiro. Ficou branco de raiva. Accionava a alavanca com a mão, os pés não lhe serviam para nada. Ela emitiu uns sons esquisitos. Com uma  impaciência selvagem ia accionando pequenos manípulos, e ela soltava ruídos, mas como não se movia, acabou por desligar o motor.
    Connie continuava sentada no talude, a contemplar as campainhas destruídas e esmagadas. “Não há nada mais belo do que a Primavera inglesa.” “Sou capaz de desempenhar as minhas funções de chefe.” “Precisamos de mais chicotes do que espadas.” “As classes dirigentes!”
    O guarda começou a subir a passos largos, já munido do casaco e da espingarda, Flossie seguia, cautelosamente, atrás dele. Clifford pediu então a Mellors que examinasse o motor. Connie, que não percebia nada de técnica dos motores e não tinha experiência de avarias, continuava placidamente sentada no talude, como se não existisse. Ele deitara-se de bruços. As classes dirigentes e as classes servidoras!
    Mellors levantou-se e disse com paciência:
- Experimente outra vez – com voz calma como se se dirigisse a uma criança.
    Clifford experimentou e ele foi atrás para a empurrar. A cadeira avançava, o motor fazia metade do trabalho e o homem o resto.
    Clifford voltou-se, amarelo de raiva.
- Saia já daí!
    Mellors afastou-se rapidamente para a banda, enquanto Clifford acrescentava:
- Como é que hei-de saber se ela está a funcionar?
    O guarda pousou a espingarda e começou a vestir o casaco. Desligara-se do assunto.
A cadeira começou a recuar lentamente.
- Clifford, olha que a cadeira não está travada! – Gritou Connie.
    Ela e Mellors conseguiram agarrar a cadeira, fazendo-a parar. Durante um momento pairou um profundo silêncio.
- É evidente que me encontro à mercê de qualquer pessoa! – exclamou Clifford, que estava amarelo de raiva.
    Ninguém respondeu. Mellors estava a pôr a espingarda a tiracolo, o seu rosto tinha uma expressão estranha e impassível; só uma paciência abstracta a caracterizava. A cadela Flossie, vigilante, quase entre as pernas do dono, terrivelmente perplexa, fitava a cadeira com um olhar carregado de desconfiança e hostilidade entre aquelas três criaturas humanas. O tableau vivant continuava imóvel entre as campainhas esmagadas. Ninguém proferiu uma palavra.”

“- Não, não pode levantar a cadeira. Dá cabo de si - insistiu Connie, vermelha de fúria.
      Ele fitou-a nos olhos e fez-lhe um sinal com a cabeça. Ela fez o que ele dizia. Ele levantou-a e ela puxou com força, a cadeira vacilou.
- Por amor de Deus! – exclamou Clifford assustadíssimo.
    Mas estava tudo bem, Mellors tinha conseguido soltar o travão. Pôs uma pedra debaixo da roda e foi sentar-se no talude. O coração batia com muita força, a cara estava branca do esforço, quase inconsciente.
    Connie olhou para ele e quase gritou de raiva. Os três mantiveram-se em silêncio sepulcral. Connie viu as mãos dele tremerem sobre as coxas.
- Está ferido? – perguntou ela, dirigindo-se para ele.
- Não, não! – ele voltou-se, irritado.
    Novamente fez-se um silêncio de morte. A cabeça loura de Clifford não se movia. Até a cadela estava imóvel. O céu cobria-se de nuvens.
    Por fim, Mellors soltou um suspiro e assoou-se a um lenço vermelho.

- A pneumonia deu cabo de mim.” 
    
   

segunda-feira, 29 de julho de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND IV - EVELYN WAUGH


 Uma passagem curta de um dos livros que mais influenciaram a minha maneira de escrever. O livro é "Brideshead revisited", retrato de uma certa Inglaterra entre guerras.

 Vi pela primeira vez a série da "Granada" quando estreou, no princípio dos anos oitenta, e só depois li o livro. Ficou comigo para sempre.



O escritor Evelyn  Waugh






Jeremy Irons como o capitão Charles Ryder, o papel que o prejectaria para uma carreira notável.


“Dormi até o impedido me chamar; levantei-me penosamente, vesti-me e barbeei-me em silêncio. Só quando cheguei à porta é que perguntei ao segundo comandante: “Como é que este sítio se chama?”
    Disse-me e, nesse instante, foi como se alguém desligasse a telefonia, e uma voz, que durante dias e dias, incessante e estupidamente, berrava aos meus ouvidos, se tivesse de súbito calado; seguiu-se um imenso silêncio, vazio a princípio, mas, à medida que a minha consciência ultrajada readquiria autoridade, enchendo-se a pouco e pouco de uma série de sons doces, naturais e há muito esquecidos; porque ele dissera um nome que me era tão familiar, um nome tão mágico e de um poder tão antigo que, ao seu simples som, os fantasmas destes últimos anos assombrados começaram a fugir.”


Castle Howard é "Brideshead", onde decorreram as filmagens.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND III. Livros e escritores que alimentam a mente



James Joyce


Ulysses


Retrato do artista.

Retomei recentemente, depois de algum tempo de repouso, a leitura de "Ulysses" o opus magnum de James Joyce. 

Trata-se de uma obra colossal, telúrica, densa e hermética, muito pessoal e imprópria para noviços. Quem nunca leu este autor, deverá começar por "A portrait of the artist as a young man" ou "Retrato do artista quando jovem", uma crónica da juventude, ou "Dubliners" ou "Gente de Dublin", uma colectânea de contos.

Sendo a escrita de Joyce muito ideossincrática, é quase virtualmente impossível obter uma tradução satisfatória. Socorro-me do trabalho notável de João Palma-Ferreira, homem de grande cultura, editado por "Livros do Brasil", que confrontei com o original em inglês.  

Toda a acção decorre num só dia, dezasseis de Junho de 1904 (Bloomsday ou dia de Bloom), num só local, a cidade de Dublin, e a estrutura da obra baseia-se no poema homérico "A Odisseia", cujo herói é naturalmente Ulisses.

Do episódio de Circe, deixo um pequeno excerto. A acção decorre num bordel, entre a meia noite e a uma da manhã, numa atmosfera onírica, sórdida e excessivamente surrealista.

O excerto descreve uma parada honorífica dedicada a Leopold Bloom.



A Dublin contemporânea da acção do livro.


   
“Prolongado aplauso. Erguem-se mastros venezianos, paus de Maio e arcos de triunfo. Um cartaz ostentando as legendas Cead Mile Failte e Mah Ttob Melek Israel atravessa a rua. Todas as janelas estão apinhadas com observadores, principalmente senhoras. Ao longo do caminho os regimentos dos Fuzileiros Reais de Dublin, dos Guardas Fronteiriços Escoceses do Próprio Rei, dos Cameron Highlanders e dos Fuzileiros Galeses, em posição firme, contêm a multidão. Rapazes dos liceus penduram-se nos candeeiros, postes telegráficos, varandas, cornijas, goteiras, chaminés, gradeamentos, algerozes, assobiando e aplaudindo. Surge a coluna de nuvem. Ouve-se à distância uma banda de pífaros e tambores a tocar o Kol Nidre. Os batedores aproximam-se com as águias imperiais içadas, hasteando bandeiras e agitando palmas orientais. O estandarte crisoelefantino do Papa ergue-se nas alturas rodeado de pendões de bandeira cívica. Aparece a frente da procissão encabeçada por John Howard Parnell, chefe do protocolo da cidade, num capote axadrezado, o arauto Athlone e o Rei de Armas do Ulster. São seguidos pelo Mui Honorável Joseph Hutchinson, Lord Mayor de Dublin, sua excelência o Lord Mayor de Cork, suas senhorias os Mayors de Limerick, Galway, Sligo e Waterford, vinte e oito Pares representativos da Irlanda, sirdares, grandes e marajás ostentando as vestes de cerimónia, a Brigada dos Bombeiros Metropolitanos de Dublin, o cabido dos santos das finanças por ordem plutocrática de procedências, o bispo de Down e Connor, Sua Eminência Michael cardeal Logue, o arcebispo de Armagh, primaz de toda a Irlanda. Sua Graça, o mui reverendo Dr. William Alexander, arcebispo de Armagh, primaz de toda a Irlanda, o chefe rabino, o moderador presbiteriano, os chefes das igrejas baptista, anabaptista, metodista e Moraviana e o honorável secretário da Liga dos Amigos. Após estes marcham as associações e sindicatos e as fanfarras com bandeiras esvoaçantes: tanoeiros, avicultores, fabricantes de moinhos, angariadores de publicidade para os jornais, amanuenses, massagistas, vinhateiros, fabricantes de fundas para herniados, limpa-chaminés, refinadores de gorduras alimentícias, tecelões de sedas e popelinas, ferradores, retalhistas italianos, decoradores de igrejas, manufacturadores de calçadeiras, cangalheiros, negociantes de sedas, lapidários, chefes de vendas, corticeiros, assessores de salvados de incêndios, tintureiros e lavadeiros, engarrafadores para exportação, peliqueiros, impressores de etiquetas, gravadores de selos heráldicos, ajudantes de mudas de cavalos, negociantes de metais preciosos, abastecedores para cricket e tiro com seta e arco, joeireiros, comerciantes de ovos e batatas, camiseiros e luveiros, empreiteiros de canalizações. Após eles marcham os Cavalheiros da Alcova, da Vara Negra, da Jarreteira, do Bastão de Ouro, o mestre de cavalos, o grande lorde camareiro, o grande-mestre-de-cerimónias, o alto condestável levando a espada do Estado, a coroa de ferro de Santo Estevão, o cálice e a bíblia. Quatro Charameleiros a pé chamam os espectadores à cena. Replicam os Guardas-Reais, fazendo soar clarins de boas-vindas. Sob um arco-de-triunfo, aparece Bloom, de cabeça descoberta, num manto de veludo carmesim orlado de arminho, levando a vara de Santo Eduardo, a esfera e o cetro com a pomba e a espada sem ponta. Vem num cavalo branco como o leite com longa e esvoaçante cauda carmesim, ricamente ajaezado, com um cabeção de ouro. Viva excitação. Das varandas, as senhoras atiram pétalas de rosa. O ar fica perfumado de essências. Os homens ovacionam. Os pajens de Bloom correm entre os espectadores  com ramos de espinheiro e de giesta.”  


quarta-feira, 12 de junho de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND II. Livros e escritores que alimentam a mente - Fernando Pessoa


FERNANDO PESSOA


O livro do desassossego






Fernando Pessoa algures no Chiado.



O trecho que a seguir se transcreve é intrinsecamente pessoano e assombroso na sua aparente simplicidade. Trata-se do encontro imaginário entre Bernardo Soares, heterónimo (ou semi-heterónimo, como o poeta o classificou) autor do "Livro do desassossego" e o próprio Fernando Pessoa.


Mais uma caminhada do poeta na cidade em que nasceu, viveu e morreu.


    "Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto em que, sobre uma loja com feitio de taberna decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.

    O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida, a ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que quando calhava jantar pelas sete horas quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me.

    Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava – parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.

    Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como que prescrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele.

    Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de inteligência animava de certo modo incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobria tão regularmente o seu aspecto que era difícil descortinar outro traço além desse.
    Soube incidentalmente, por um criado do restaurante, que era empregado de comércio, numa casa ali perto.

    Um dia houve um acontecimento na rua, por baixo das janelas – uma cena de pugilato entre dois indivíduos. Os que estavam na sobreloja correram às janelas, e eu também, e também o indivíduo de quem falo. Troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A sua voz era baça e trémula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar. Mas era porventura absurdo dar esse relevo ao meu colega vespertino de restaurante.

    Não sei porquê, passámos a cumprimentarmo-nos desde esse dia. Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos jantar às nove e meia, entrámos em uma conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da revista “Orpheu”, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras.Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em “Orpheu” soe ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, soia gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também."

Livro do desassossego


segunda-feira, 20 de maio de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND I. Livros e escritores que alimentam a mente

 Dou início à publicação de pequenos textos ou excertos de textos de livros e escritores de que gosto. O único critério é o meu gosto pessoal.



Franz Kafka


 O primeiro texto é extraído dos "Diários" de Franz Kafka, na entrada de 30 de Julho de 1914.

 Franz Kafka é um escritor checo de língua alemã e de ascendência judaica, nascido em Praga, em 1883. Por ter morrido de tuberculose em 1924, não acompanhou o destino das suas irmãs, assassinadas pelo regime Nazi.

 Licenciado em Direito, trabalhou em companhias de seguros e era conhecedor do sistema de justiça germânico da sua época, o que se reflecte em vários dos seus escritos.
O texto que aqui dou é perturbadoramente actual, apesar de ter quase cem anos.

A tradução do alemão é de Maria Adélia Silva Melo e a edição é da Difel.



Um escritório onde Kafka poderia ter trabalhado.


    "O director da Companhia de Seguros Progresso estava sempre profundamente insatisfeito com os seus funcionários. Agora todos os directores estão insatisfeitos com os empregados; a diferença entre empregados e directores é demasiado grande para ser transposta por simples ordens da parte do director e simples obediência da parte dos empregados. Só o ódio mútuo pode transpor a diferença e conferir perfeição a toda a empresa.

    Bauz, o director da Companhia de Seguros Progresso, olhou desconfiado para o homem que estava de pé em frente da secretária, que pretendia um lugar na companhia. Olhava também de vez em quando para os papéis que estavam à sua frente, na secretária.

    “O senhor é muito alto” disse ele, “isso vê-se; mas que sabe o senhor fazer? Os nossos empregados têm de saber fazer mais coisas para além de lamberem selos, e até mesmo isso não precisam de fazer, porque essas coisas são automáticas na nossa firma. Os nossos empregados são em parte funcionários, têm trabalho de responsabilidade para desempenhar; o senhor acha que está à altura? A sua cabeça tem uma forma esquisita. A sua testa é muito abaulada. Espantoso. Ora bem, qual foi o seu último emprego? O quê? Não trabalha há um ano? Mas porquê? Teve uma pneumonia? Ah, sim? Bem, isso não é lá uma grande recomendação, pois não? É claro que só empregamos pessoas em perfeito estado de saúde. Antes de ser admitido terá de ser visto por um médico. Agora está mesmo bem? Sim? É claro que é possível. Diga alguma coisa! Faz-me nervos, a falar assim baixinho. Vejo aqui que é casado, tem quatro filhos. E não trabalhou durante um ano! De facto, homem! A sua mulher lava para fora? Está bem. Bom, está certo. Uma vez que já aqui está, veja se o médico o observa agora; o empregado vai mostrar-lhe onde é. Mas isso não quer dizer que nós o vamos empregar aqui, mesmo que a opinião do médico seja favorável. De maneira nenhuma. De qualquer modo receberá pelo correio a participação da nossa decisão. Para ser franco, devo dizer-lhe sem rodeios: não estou nada bem impressionado consigo. Precisamos de um empregado completamente diferente. Mas vá ao médico para ser observado. Olhe que não lhe faz nada bem tremer dessa maneira. Não tenho autoridade para dispensar favores. Está disposto a fazer qualquer trabalho? Toda a gente está. Não é nada de especial. E agora digo-lhe pela última vez: vá-se embora e não me tome mais tempo. Já chega”.

    Bauz teve de dar um murro na mesa para que o homem se deixasse conduzir pelo empregado para fora do escritório do director". 


quarta-feira, 8 de maio de 2013

O autor

  

  O autor em 1966 ou 1967, no eléctrico da Praia das Maçãs, a fazer o que tinha que ser feito...