James Joyce
Ulysses
Retrato do artista.
Retomei recentemente, depois de algum tempo de repouso, a leitura de "Ulysses" o opus magnum de James Joyce.
Trata-se de uma obra colossal, telúrica, densa e hermética, muito pessoal e imprópria para noviços. Quem nunca leu este autor, deverá começar por "A portrait of the artist as a young man" ou "Retrato do artista quando jovem", uma crónica da juventude, ou "Dubliners" ou "Gente de Dublin", uma colectânea de contos.
Sendo a escrita de Joyce muito ideossincrática, é quase virtualmente impossível obter uma tradução satisfatória. Socorro-me do trabalho notável de João Palma-Ferreira, homem de grande cultura, editado por "Livros do Brasil", que confrontei com o original em inglês.
Toda a acção decorre num só dia, dezasseis de Junho de 1904 (Bloomsday ou dia de Bloom), num só local, a cidade de Dublin, e a estrutura da obra baseia-se no poema homérico "A Odisseia", cujo herói é naturalmente Ulisses.
Do episódio de Circe, deixo um pequeno excerto. A acção decorre num bordel, entre a meia noite e a uma da manhã, numa atmosfera onírica, sórdida e excessivamente surrealista.
O excerto descreve uma parada honorífica dedicada a Leopold Bloom.
A Dublin contemporânea da acção do livro.
“Prolongado aplauso. Erguem-se mastros venezianos, paus de Maio
e arcos de triunfo. Um cartaz ostentando as legendas Cead Mile Failte e Mah
Ttob Melek Israel atravessa a rua. Todas as janelas estão apinhadas com
observadores, principalmente senhoras. Ao longo do caminho os regimentos dos
Fuzileiros Reais de Dublin, dos Guardas Fronteiriços Escoceses do Próprio Rei,
dos Cameron Highlanders e dos Fuzileiros Galeses, em posição firme, contêm a
multidão. Rapazes dos liceus penduram-se nos candeeiros, postes telegráficos,
varandas, cornijas, goteiras, chaminés, gradeamentos, algerozes, assobiando e
aplaudindo. Surge a coluna de nuvem. Ouve-se à distância uma banda de pífaros e
tambores a tocar o Kol Nidre. Os batedores aproximam-se com as águias imperiais
içadas, hasteando bandeiras e agitando palmas orientais. O estandarte
crisoelefantino do Papa ergue-se nas alturas rodeado de pendões de bandeira
cívica. Aparece a frente da procissão encabeçada por John Howard Parnell, chefe
do protocolo da cidade, num capote axadrezado, o arauto Athlone e o Rei de
Armas do Ulster. São seguidos pelo Mui Honorável Joseph Hutchinson, Lord Mayor
de Dublin, sua excelência o Lord Mayor de Cork, suas senhorias os Mayors de
Limerick, Galway, Sligo e Waterford, vinte e oito Pares representativos da
Irlanda, sirdares, grandes e marajás ostentando as vestes de cerimónia, a
Brigada dos Bombeiros Metropolitanos de Dublin, o cabido dos santos das
finanças por ordem plutocrática de procedências, o bispo de Down e Connor, Sua
Eminência Michael cardeal Logue, o arcebispo de Armagh, primaz de toda a
Irlanda. Sua Graça, o mui reverendo Dr. William Alexander, arcebispo de Armagh,
primaz de toda a Irlanda, o chefe rabino, o moderador presbiteriano, os chefes
das igrejas baptista, anabaptista, metodista e Moraviana e o honorável
secretário da Liga dos Amigos. Após estes marcham as associações e sindicatos e
as fanfarras com bandeiras esvoaçantes: tanoeiros, avicultores, fabricantes de
moinhos, angariadores de publicidade para os jornais, amanuenses, massagistas,
vinhateiros, fabricantes de fundas para herniados, limpa-chaminés, refinadores
de gorduras alimentícias, tecelões de sedas e popelinas, ferradores,
retalhistas italianos, decoradores de igrejas, manufacturadores de calçadeiras,
cangalheiros, negociantes de sedas, lapidários, chefes de vendas, corticeiros,
assessores de salvados de incêndios, tintureiros e lavadeiros, engarrafadores
para exportação, peliqueiros, impressores de etiquetas, gravadores de selos
heráldicos, ajudantes de mudas de cavalos, negociantes de metais preciosos,
abastecedores para cricket e tiro com seta e arco, joeireiros, comerciantes de
ovos e batatas, camiseiros e luveiros, empreiteiros de canalizações. Após eles
marcham os Cavalheiros da Alcova, da Vara Negra, da Jarreteira, do Bastão de
Ouro, o mestre de cavalos, o grande lorde camareiro, o
grande-mestre-de-cerimónias, o alto condestável levando a espada do Estado, a
coroa de ferro de Santo Estevão, o cálice e a bíblia. Quatro Charameleiros a pé
chamam os espectadores à cena. Replicam os Guardas-Reais, fazendo soar clarins
de boas-vindas. Sob um arco-de-triunfo, aparece Bloom, de cabeça descoberta,
num manto de veludo carmesim orlado de arminho, levando a vara de Santo
Eduardo, a esfera e o cetro com a pomba e a espada sem ponta. Vem num cavalo
branco como o leite com longa e esvoaçante cauda carmesim, ricamente ajaezado,
com um cabeção de ouro. Viva excitação. Das varandas, as senhoras atiram
pétalas de rosa. O ar fica perfumado de essências. Os homens ovacionam. Os
pajens de Bloom correm entre os espectadores
com ramos de espinheiro e de giesta.”