Charles Baudelaire
Confesso-me culturalmente mais anglófono que francófono, se é que estas divisões significam alguma coisa.
Hoje, trago um poeta maior da língua francesa e de todas as línguas: Charles Baudelaire, que exerceu uma decisiva influência nos nossos poetas e escritores do final do séc. XIX e princípio do séc. XX.
O poeta escreveu um livro de "pequenos poemas em prosa" em que a protagonista é a sua amada Paris. O livro chama-se "O spleen de Paris". Uma vez que as pequenas histórias não estão interligadas entre si senão pela sua atmosfera parisiense, podem ser lidas ao acaso.
Entre as várias histórias, deixo uma das mais pequenas.
AS JANELAS
Quem olha do exterior
para uma janela aberta nunca vê tantas coisas como quem olha para uma janela
cerrada. Não existe objecto mais profundo, mais deslumbrante, do que uma janela
alumiada por uma candeia. O que se pode ver à luz do Sol é sempre menos
interessante do que o que se passa por trás dum vidro. Nesse buraco negro ou
luminoso vive a vida, sonha a vida, sofre a vida.
Para além das vagas dos
telhados, distingo uma mulher de meia-idade, já com rugas na face, pobre,
sempre vergada sobre qualquer coisa, e que nunca sai de casa: com o seu rosto,
com o seu vestido, com os seus gestos, com quase nada, refaço a história dessa
mulher, ou antes, a sua lenda e às vezes conto-a a mim mesmo chorando.
Se se tivesse tratado
dum pobre velho, eu teria refeito a sua vida com a mesma facilidade.
E deito-me orgulhoso de
ter vivido e sofrido pelos outros, que não por mim.
Talvez me digas: “Estás
certo que essa lenda seja verdadeira?” Que pode importar-me qual seja a
realidade situada para além de mim, se ela me ajudou a viver, a sentir que sou
aquilo que sou?