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terça-feira, 12 de julho de 2016

BOOKS FEED YOUR MIND XII - WILLIAM SHAKESPEARE (2)



  A peça abre com o famoso monólogo de Gloucester, futuro Rei Ricardo III, e o leitor/espectador fica logo a saber quem é o personagem, tal é a força da linguagem utilizada por Shakespeare.


  A tradução de Henrique Braga, na edição da Lello, é antiga e hoje seria absolutamente censurável devido às liberdades de que o tradutor lança mão; e todavia há nela uma poesia muito própria que a enriquece, ainda que em detrimento do respeito pelo texto original.

  Laurence Olivier incarnou o personagem talvez como nunca ninguém o fez antes ou depois dele.

  "O sol de Iorque mudou em Primavera o Inverno dos nossos infortúnios, e todas as nuvens que pairavam ameaçadoras sobre a nossa casa imergiram-se nos profundos abismos do oceano. Agora cingem nossa fronte os virentes louros da vitória, as nossas amolgadas espadas suspendemo-las como troféus; aprazíveis reuniões substituíram as nossas contendas armadas, e às marchas guerreiras seguiram-se as agradáveis músicas da dança. Desanuviou-se a fronte ameaçadora do guerreiro feroz; em vez de montar o seu cavalo de batalha e de infundir o terror nos corações inimigos, dança com pé ligeiro, em feminis aposentos, ao som encantador da voluptuosa harpa. Mas eu, que nem sou dado a alegres porfias, nem a mirar-me desvanecido ao espelho, eu, cuja aparência grosseira não possui em graças picantes as precisas para as patentear a uma ninfa voluptuosa e sedutora, eu, a quem a caprichosa natureza negou belas formas e nobres feições, eu, que ela colocou neste mundo dos vivos antes do prazo natural, disforme, incompleto, apenas esboçado, e isso mesmo por um modo tão defeituoso e desagradável, que os cães me perseguem ladrando, quando passo coxeando ao pé deles; durante esses efeminados divertimentos da paz, não me resta outro meio de me entreter, senão olhar para a minha sombra, quando o Sol brilha, e analisar a minha própria deformidade. Pois bem, já que à minha figura não convém a parte de namorado, e que não tenho o dom de agradar, resolvi tornar-me um celerado, e criar ódio a estes frívolos passatempos." 

BOOKS FEED YOUR MIND - XII WILLIAM SHAKESPEARE


  Um dos momentos-chave de qualquer enredo ficcional reside na caracterização física e psicológica dos personagens, pois é a partir daqui que o leitor vai estabelecer com estes, laços que perdurarão na leitura da obra e para além dela, sejam de simpatia, admiração, indiferença ou repulsa, consoante a intenção do autor.

  E conheço poucas caracterizações mais decisivas do que a abertura de "Ricardo III", de Shakespeare para causar essa primeira impressão ao leitor.

  Esta obra foi-me revelada quando estudava Direito Penal e o Prof. Doutor Faria Costa (hoje, Provedor de Justiça, e à época, assistente do Prof. Eduardo Correia) nos citou esta passagem, a propósito da Teoria da Culpa. 

  Devem os agentes que praticam crimes serem censurados também por aquilo que são ou em que voluntariamente se tornaram, ou apenas pelos actos que praticam sem conexão com a sua personalidade? Somos culpados por aquilo que somos ou por aquilo que fazemos?

  (A passagem segue no próximo post).