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quinta-feira, 10 de outubro de 2013

BOOKS FEED YOUR MIND VIII. LIVROS E ESCRITORES QUE ALIMENTAM A MENTE

Vergílio Ferreira sobre Eça de Queiroz



  Ainda do diário de Vergílio Ferreira "Conta-corrente", duas entradas acerca do mestre maior das nossas letras de oitocentos:

  Na primeira, o valor emotivo das palavras, na segunda, a magia das palavras.

   13 de Setembro (sexta) 1974. De vez em quando, releio uma página do Eça. E é sempre o mesmo encantamento, a mesma misteriosa vibração da "palavra". Ninguém como ele conheceu as ocultas ressonâncias da língua. Os especialistas afirmam o "arbitrário" das palavras. É julgar a língua como uma articulação mecânica. Decerto o que não parece deriva do que nela acumulámos de emotividade. Mas creio que um enorme número de palavras tem uma raiz onomatopaica, ao menos longínqua. No "ribombar" ou "cacarejar" é evidente. Mas por exemplo "lua" (moon, luna, sêlênê) não terá a sugestão de suavidade, ténue fluidez que tem algo de onomatopaico? A palavra "cola" e a mais popular "goma" têm a mesma sugestão, mas voltada para realidades diferentes. A "cola" é seca e a "goma" é viscosa. A primeira refere um efeito, a secura do que está colado; a segunda refere-se à própria qualidade do líquido (como o glue inglês - este, sugestionante do murmúrio da goma escorrente de um gargalo -, palavra onomatopaica também), um líquido viscoso, pastoso. Uma mulher "bela" é mais alta que uma mulher "bonita" ou "linda", sendo que a "bonita" sugere uma nitidez de contornos como uma boneca, e "linda" sugere uma pequena estatura e um certo resplendor, talvez do olhar. Mas donde a "altura" da "bela"? Talvez o alongamento do e e do l que prolonga a dicção. (Daí o "resplendor" de "linda" da conjugação do l e do in que é agudo e expansivo.) Do mesmo modo, uma mulher "formosa" é mais "redonda" ou mesmo mais "gorda" do que uma mulher "bela". E a sua beleza é mais "moral" que a da mulher "bela" ou "linda". Mas porque é que "calvo" não é muito cómico e o é "careca"? Talvez porque "careca" tem uma nitidez que sugere a rasa superfície de um crânio como uma bola de bilhar e "calvo" (alvo) sugere só a brancura desse crânio, dando o c a sugestão do "redondo" (calvo-cavo). Do mesmo modo "violino" ou "rabeca". A "conotação" das palavras, o seu valor emotivo, deriva da carga de sensibilidade que nelas depusemos. mas assim, elas têm longinquamente um valor onomatopaico a posteriori. Detendo-nos, porém, na simples relação entre a palavra e o seu significado, nós descobrimos decerto que um grande número delas tem um intrínseco significado que em nada é arbitrário. Mas aquelas que o são - sê-lo-ão mesmo? Será imaginável uma designação por mero arbítrio, parecido com o capricho? Não é mais lógico admitir que o laço de necessidade se perdeu?


          

Quinta do Vesúvio, Douro, Portugal


  15 de Agosto (sexta) 1975. Que fazer? Que ler? Que pensar? Tomo A Cidade e as Serras, releio pela centésima vez algumas páginas da segunda parte. E um prazer infinito inunda-me na alegria da serra, no prazer sensório da realidade inventada pela magia da palavra do maior artista dela na nossa literatura. E a cada passo estremeço de uma delícia indizível na "água nevada e luzidia" da fonte, no grande salão em que o ar circulava "como num eirado", no vinho "seivoso", no grande salão vazio "com uma sonoridade capitular". Todo o "estilo" de Eça se nos dirige aos sentidos que vibram não com a realidade conhecida mas com o prazer que está lá e só na memória se conhece ou na translação dessa realidade que nela vibra e só num sobressalto se conhece como presença oblíqua e incerta. Assim o vinho e a água e tudo o mais é na escrita de Eça que nos sabem maravilhosamente - não no vinho e água que bebemos. Assim o real é insípido e inexpressivo sem o calor e a expressão que o artista lhe inventa e nos ficam submersos na memória e aí procuramos indistintamente para haver sabor e o mais quando em presença desse real.



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