Storytelling por quem sabe escrever.
"3 de Outubro
de 1974. O Flic está a morrer. O Flic é um cão, um dos cães, do Rogério.
Encontrei a Titilde, que me anunciou a desgraça. Aliás, o Rogério, referindo-se
há dias ao desenlace próximo, tinha lágrimas nos olhos. Vai enterra-lo aqui.
Terá lápide? Como amigos, fomos assistindo ao envelhecimento do cão. Tem
dezassete, menos três que o Argos, o cão do Ulisses, o mais ilustre canil
literário e que foi o primeiro a reconhecer o dono e morreu de comoção. O Flic, quando se comovia, tinha um
colapso, caía em terra e mijava-se. É um cão baixo, género lulu, mas em preto.
Em toda a sua vida não se lhe conheceram ligações amorosas. E talvez porque
desse conta das nossas dúvidas sobre a sua dignidade macha, um dia saiu-se. Há
lá uma cadela na casa muito mais alta do que ele. O Flic tentava o golpe, mas não chegava onde devia. Então lembrou-se
de subir para um degrau da escada – e cumpriu. Da aventura heróica nasceram
dois cães. Pretíssimos. E cometido o feito, seguro de que já não deixava má reputação,
Flic aposentou-se e pôs-se a
envelhecer. Tinha todos os tiques dos velhos: ressentimento contra os filhos,
que eram activos, mordia-lhes sem razão, era guloso. Inchou, já estava quase
cego. Chegava-se muito às pessoas, decerto para lhe valerem nalgum aperto. Lá
está espapaçado no chão, as patas espalhadas, a babar-se. Creio que lhe vão dar
o golpe de misericórdia – uma injecção que acabe com o resto. Era o Flic. Vai morrer. Está um dia de sol
outoniço."
Vergílio
Ferreira, Conta-corrente 1
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